Os pensamentos de Jefferson
- Samuel da Rosa Rodrigues
- 2 de nov. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 9 de nov. de 2024
Eram 3 horas da manhã quando os pensamentos se encontraram na porta do ouvido de Jefferson. Ele roncava, o que fazia seu rosto balançar constantemente. Os pensamentos que entravam eram bolinhas cheias de potencial que só tinham braços, olhos e boca. Eles vinham de mãos dadas em uma fila indiana, dando pulinhos curtos para não cair e ainda tinham que desviar da baba que escorria pela boca aberta do seu dono. A cena seria engraçada se não fosse nojenta também.
Um pensamento maduro avistou eles e parou para cumprimentar.
— Boa noite, sejam bem-vindos! O caminho é esse mesmo, só seguir!
Os pensamentos que saíam aos poucos da cabeça de Jefferson andavam com mais segurança, sem se dar as mãos. Depois de entrar na mente, eles ganhavam pernas e expressões únicas que os definiam, ficando mais desenvolvidos.
— Obrigado! — O primeiro pensamento novato segurou a fila para conversar. Alguns dos pensamentos mais fracos tropeçaram e caíram no travesseiro. Teria dados de ombros, se tivesse ombros. — Ah, não dá para lembrar de tudo mesmo. E aí, como ele está hoje?
— Tivemos um dia normal. A fome e a vontade de viajar seguem ocupando espaço na cabine, mas deixamos um cantinho para os novatos. Pensamentos novos sempre fazem bem. Liberamos uma boa área, tem alguns grandões saindo.
— Ah, que bom! — O pensamento novo pulou no lugar, empolgado — Obrigado pela oportunidade. Sei que a Nuvem de Pensamentos não é tão confortável quanto estar lá dentro.
— A gente se acostuma. Eu mesmo já entrei e saí tantas vezes que perdi a conta.
O novato gaguejou.
— Ah, é? Tem algum dia em que a cabeça fica mais cheia?
— Dias de terapia. As noites são complicadas. Sempre vem um monte de insights, alguns fraquinhos, outros mais formados, mas eles sempre dão um jeito de entrar escondido em outros pensamentos maiores. Aliás, se me permite, tem um pequeno pensamento tentando entrar escondido preso nas suas costas, sabia?
O novato estendeu a mão para trás e tirou uma ideia minúscula que estava agarrada a ele, como uma goma de mascar presa no cabelo. Ele a segurou na altura dos olhos.
— E você é…?
A ideia minúscula se balançou, nervosa.
— Eu sou uma conclusão que ele chegou na terapia, me deixa entrar, por favor! Ele precisa me internalizar, mas eu tô muito abstrata ainda! — sua voz estridente se destacava acima do ronco — Já tentei entrar agarrada em lembrança de foto, em ideia de viagem, mas ele só percebe o concreto, não tá conseguindo pegar o abstrato! Achei que com você de repente desse certo. Eu posso até ficar menos óbvio, se você me deixar ir com você, por favor!
O novato tentou acalmar a ideia minúscula e a colocou no ombro. O pensamento mais velho riu, como se já tivesse visto aquela cena várias vezes.
— Se me permite a indiscrição, você é um pensamento de quê?
O novato começou a responder orgulhoso.
— Sou uma ideia de livro nova! — Ele levantou os olhos para o céu e começou a declamar — “Imagine um mundo em que as pessoas…”
O pensamento antigo o interrompeu.
— Legal, pode parar, tá bem.
— Ué, você não gostou?
— Não é isso. Lembra que eu disse que liberamos bastante espaço hoje?
Ele apontou para a fila atrás dele, onde um grupo de pensamentos parrudos com músculos bem definidos o seguia.
— Todos nós somos “Imagine um mundo em que as pessoas…”.
O novato teria engolido em seco se tivesse barriga.
— Todos vocês são ideias de livro?
— Sim, e nós estamos aqui faz tempo! O de trás aqui é um livro de fantasia. Sabe aquele bonitão ali? É um livro erótico. Sempre entra de volta quando ele tá com tesão. Aqueles três brigando lá no fundo são uma trilogia espacial. Eles brigam para decidir quem é o meio da trilogia. Ô, separa eles ali! — ele fez sinal para os outros pensamentos — Sei lá como, corta a mão de um deles!
O pensamento do livro de fantasia pegou uma espada e saiu na direção dos três da trilogia espacial. O novato voltou a questionar seu veterano.
— E você?
— Ah, eu estou aqui desde que ele entrou para a faculdade. Eu já mudei tantas vezes que nem lembro mais da minha versão original.
O pensamento novo baixou os olhos como sinal de respeito. E como a única ação que conseguia fazer.
— Poxa… eu sinto muito.
— Imagina, deixa disso! Tá tudo bem! — ele deu um tapinha onde ficaria o ombro do novato no futuro — Eu fico feliz de não lembrar porque isso significa que ele mudou de opinião sobre alguns assuntos. Todo mundo sabe como é bom deixar alguns conceitos de quando você tinha 18 anos para trás, né… mas os valores da minha história se mantêm. Ele está sempre se lembrando de mim. Por isso que eu fico aqui, guiando o pessoal. Todos eles têm um pouquinho de mim. Você também, inclusive. E você está até levando uma metáfora de brinde!
O pensamento que antes parecia uma goma de mascar tinha se metamorfoseado em um relógio no braço do pensamento novato.
— Eu não sou uma metáfora! Eu sou um relógio! — sua voz afinou mais ainda quando diminuiu de tamanho — Você já percebeu como o tempo está passando?
Os dois pensamentos riram juntos. Jefferson levantou a mão em direção ao rosto para coçar a barba. Aquilo não afetava os pensamentos mas, mesmo assim, alguns perderam o equilíbrio e caíram no travesseiro.
— É aqui que a gente divide as sugestões das epifanias. Eu já vi tanta dica de coach cair nesse travesseiro… espero que essa fronha tenha sido lavada.
O pensamento novato olhou para o ouvido ao longe. Tinha que seguir em frente. O veterano deu um tapinha onde um dia seriam suas costas.
— Você vai ficar bem. Ele está mais maduro, as companhias são boas, só não deixa ele te esquecer em um canto ou um conto qualquer. Na dúvida, vem aqui fora dar uma volta com a gente! Eu e as outras ideias de livros costumamos ficar perto dos ouvidos.
— Achei que você ficava perto dos olhos, para ajudar ele a lembrar das suas ideias de histórias.
— Ao redor dos olhos ficam os pensamentos eróticos. Eles sempre conseguem chegar lá antes, não sei como. O menino é rápido.
Jefferson se mexeu novamente
— Vai, entra logo. Talvez ele acorde para ir ao banheiro. É um bom momento para ter ideias. Ele vai com olhos fechados do quarto até lá, não tem como se distrair, mas cuidado com a luz do celular. Boa sorte!
— Obrigado!
O pensamento mais novo agradeceu balançando a cabeça que era o seu corpo inteiro.
— E boa sorte, metáfora!
O relógio gritou de volta.
— Eu não sou uma metáfora!
Os pensamentos maduros saíram em direção ao couro cabeludo.
— Vamos lá rapazes, vamos decifrar os perigos noturnos!
A linha de pensamentos mais novos começou a pular no lugar, como bolas de pilates. Um dos pensamentos novatos, inclusive, era a ideia de comprar uma bola de pilates, que não achou muita graça no movimento de todos. Alguns boing boing depois, estavam todos na entrada do ouvido.
Um pensamento inspetor, mais experiente, usando óculos e suspensórios os recebeu.
— Pensamentos desta quarta, certo?
— Isso!
Ele colocou as mãos ao redor da boca para os pensamentos novos lhe ouvirem melhor.
— Pessoal da fila, quem aqui for ideia de aproveitar desconto e promoção pode sair. O pessoal do financeiro não quer que vocês se multipliquem lá dentro.
Um “aaah” sonoro ecoou no silêncio do quarto.
— Essas ofertas do dia, vou te falar. Deixa eu olhar a lista — ele puxou uma folha de papel amassado do bolso — dois TEDx, uma palestra no trabalho, um podcast… origens normais de pensamentos, nada fora do comum — ele pegou um walkie-talkie preso nos suspensórios e gritou — Tudo certo na primeira revista, vou liberar.
Um vento quente veio de dentro do ouvido e se misturou com o frio de fora. Várias vozes começaram a ressoar ao mesmo tempo.
— Pessoal, todo mundo aqui sabe o que é um ouvido, né?! Vocês vão seguir na direção daquele buraco! — o inspetor gritou por cima dos inúmeros pensamentos de dentro da cabeça que começaram a vazar para fora — É uma queda brusca para dentro! Talvez alguns de vocês mudem ao entrar na cabeça dele, mas não desistam!
Um yorkshire montado em um pterodáctilo saiu do buraco do ouvido. O guarda gritou no walkie-talkie.
— Atenção, pensamento foragido! Atenção, pensamento foragido! — os pensamentos da fila arregalaram os olhos — Isso é normal, não se iludam. Talvez vocês se tornem um yorkshire, talvez você se tornem um pterodáctilo… Não sei que metáforas vocês estão levando para dentro dessa cabecinha.
Uma voz fina gritou por cima do barulho.
— Eu não sou uma metáfora, eu sou um relógio!
O walkie-talkie na cintura do pensamento inspetor apitou. Ele colocou no ouvido.
— Certo pessoal, fila, por favor. A entrada de vocês vai acontecer agora. Entrem um por vez, mantenham-se o menos abstratos possíveis e cuidado com os pensamentos intrusivos.
Enquanto o yorkshire latia, o pensamento novo foi até à beira do buraco e olhou para a escuridão. O inspetor gritou:
— O mundo está cheio de pensamentos sem corpo! Sem ofensa! Vão lá! Criem suas pernas. Descubram quem vocês são. Podem ir!
Jefferson roncou. O barulho do ouvido ecoou de dentro pra fora. O jovem pensamento pulou para dentro daquele buraco cheio de promessas. Era hora de tornar algumas ideias realidade.

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